O mundo virtual e a perda de sentido da vida

Publicada em 01/10/2021

Nesta última semana do Setembro Amarelo, falaremos sobre um assunto atual e necessário, que transcende os limites do mês destinado ao debate nacional sobre o tema. Vamos falar a seguir do suicídio potencializado pela violência virtual das redes sociais. Ser alvo de haters na internet pode ser a última fronteira para quem está vulnerável. Hater é um termo usado na internet para classificar pessoas que postam seguidos comentários de ódio, praticando, assim, o bullying virtual. É um inimigo invisível, ou, às vezes, um exército deles!

Nessa “realidade”, o ódio, que antes estava presente na escola ou na rua, passa a andar junto com a vítima e permanece dentro de casa, no trabalho, em qualquer lugar. Está sempre no bolso ou na bolsa, nas pontas dos dedos, na tela do celular. Como as demais violências, ela está, sobretudo, direcionada às minorias, como negros, mulheres e população LGBTQIA+. Porém, a linguagem do ódio que se manifesta nas plataformas digitais nem sempre tem alvo certo. Por isso, é importante que familiares, professores e amigos estejam atentos a qualquer sinal de alerta.

A violência linguística que causa o ódio, a raiva, o “cancelamento do outro”, a destruição de reputações, pode ser determinante, ou ocupar um lugar central no adoecimento psíquico e social de quem é agredido e até mesmo de quem agride. Ela pode funcionar como um gatilho para que uma pessoa decida por um caminho sem volta: o de retirar a própria vida.

Para falar sobre esse assunto, entrevistamos o ex-aluno do curso de Jornalismo da UFSJ, Carlos Bem. Atualmente, ele é doutorando do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Orientado pelo professor Rodrigo Borba, Carlos desenvolve pesquisa que estuda a forma com que usamos a linguagem nas interações on-line.

Quais as principais formas nas quais a linguagem do ódio se manifesta nas plataformas digitais?
Carlos Bem – A violência linguística aparece nas plataformas digitais em forma de comentários diretos ou indiretos. Pode vir de uma ofensa direcionada ou de comentários aparentemente inocentes, mas sempre carrega valores e crenças que a pessoa já possui. Só na interação on-line ainda há a crença de uma “identidade não-identificada”, a utopia de um sujeito anônimo que estaria protegido da responsabilização de seus posicionamentos, uma certa crença na impunidade dos seus atos. De maneira mais profissional, essa violência funciona como uma arquitetura do ódio, porque ela é financiada, organizada e seus alvos são escolhidos. Há ainda a compra de perfis falsos (bots) e o disparo de mensagens em massa nas plataformas digitais, em especial por meio de aplicativos de mensagens como o WhatsApp e o Telegram. Essas mensagens, geralmente direcionadas a celebridades e políticos, são levadas para outras plataformas já com um exército de perfis digitais disseminando ódio para destruir reputações e promover campanhas de cancelamentos. Como tendemos a copiar comportamentos, vamos naturalizando um comportamento de manada, que vai modelando o comportamento nas plataformas: para qualquer conteúdo que desagrade, invoca-se uma personalidade autoritária, justiceira, que exerce poder de acordo com seus valores e crenças, deixando pouco ou quase nenhum espaço para as diferenças nas formas de pensar e ser no mundo.

Como você percebe o fato dessa linguagem ser determinante, ou ocupar um lugar central para fazer girar essa roda de adoecimento psíquico e social?
Carlos Bem – Quando a web 2.0 chegou, nós tínhamos o ideal de que ela serviria para conectar as pessoas. Mas, rapidamente, vimos que ela pode tanto conectar quanto desconectar. Pode servir como instrumento para destruir democracias e promover a perseguição a líderes de oposição aos governos instituídos. Pode servir também para espionar chefes de Estado ou dados dos usuários para modelar negócios sem consentimento. As plataformas se transformaram na extensão do mundo offline. Estão nas palmas das nossas mãos, oferecendo acesso a informações numa velocidade jamais imaginada. Tudo isso é operado pela linguagem, o eixo central de como nos relacionamentos no mundo virtual. A diferença é que, na interação face a face, somos mais polidos, cordiais, escolhemos melhor as palavras para nos relacionarmos. No on-line, a tendência é para a ofensa, é sermos rudes, pouco empáticos. Os comentários deixaram de ser opiniões para se tornarem sentenças condenatórias. As plataformas constroem um mundo imaginário, absolutamente perfeito, que não existe na vida real, e isso adoece as pessoas. Há uma ditadura do perfeccionismo que nos molda cada vez mais para o narcisismo: não podemos errar, não podemos ser imperfeitos. Temos seguir o modo de vida da blogueira que acorda de manhã, toma um belo café, com todo tipo de frutas, faz ioga, duzentos procedimentos estéticos, trabalha, vai pra academia, não engorda e tem marido e filhos perfeitos. Aquelas campanhas publicitárias de uma pessoa e família perfeitas saíram da TV e estão na palma das nossas mãos, pessoas sufocadas e adoecidas justamente por essas narrativas! Estamos diante de uma linguagem violenta, que pode contribuir para que as pessoas fiquem mais ansiosas, depresivas, e caminhem para o suicídio. Nos adolescentes, esses reflexos são mais preocupantes, porque estamos aprendendo a lidar com emoções, com a aceitação, rejeição, afeto, empatia. Todo cuidado é necessário: observe atentamente como os adolescentes interagem com os mundos on-line e offline.

Dicas de como agir: o que fazer, ou o que não fazer, em casos de ataques nas redes?
Carlos Bem – Se a pessoa for alvo de ataques, deve tirar print dos comentários e, se possível, copiar o link do perfil de quem fez esse comentário. Vá a uma delegacia e faça um boletim de ocorrência. Temos, no Brasil, o Marco Civil da Internet, que tipifica os crimes cometidos no ambiente on-line. Ainda temos muito a avançar, mas o setor de inteligência das polícias Civil e Federal têm avançado bastante em tecnologia para identificar os autores dos ataques e responsabilizá-los. Não vale a pena entrar em discussões, ainda mais se perceber que o ataque é orquestrado. Outro cuidado é procurar cuidar da saúde mental e social, construindo redes de amizades, de afeto e compartilhamentos que levem a formas de interação on-line mais saudáveis, sobretudo nesse momento de distanciamento físico, para que não nos imaginemos isolados e sozinhos no mundo. Não estamos: sempre teremos pessoas dispostas a ajudar, que seguem os mesmos ideais ou hobbies. Lembre-se de que a internet é um mundo gigante, onde é possível encontrar nosso lugar e compartilhar vida, experiências, afetos.