Especial Dia do Professor: Você precisa ter paixão

Publicada em 21/10/2019

“Eu era muito tímida! Meu ideal era ser um decalque, encostar na parede e desaparecer”, brinca, relembrando a introversão que marcou sua infância e determinou seu futuro. Mesmo sem nunca ter sonhado com isso, Glória Maria Ferreira Ribeiro se tornou uma professora dedicada a seus estudantes, uma intelectual preocupada com a humanidade na Academia.

Foi na Universidade Federal do Rio de Janeiro que a carioca iniciou sua trajetória acadêmica. O primeiro passo foi a graduação em Filosofia, no ano de 1987. Nos anos seguintes, Glória se especializou, fez mestrado e doutorado na mesma área, na mesma instituição. Mudou-se para São João del-Rei na década de 1990; há 23 anos, desde antes do surgimento da UFSJ, é professora do Departamento de Filosofia e Métodos.

Escolheu o curso de Filosofia para “fugir de empregos em que tivesse que falar com o público”, atraída pelas leituras e pelo ambiente que propiciava a organização do pensamento, aliada a exercícios de escrita. Chegou a considerar o curso de Jornalismo, desde que não tivesse que realizar entrevistas, mas mudou de ideia quando conheceu um professor estranho, que falava coisas herméticas e a impressionou profundamente. “Existem maneiras e maneiras de estudar, de ver o mundo, e esse professor me mostrou uma maneira viva, bacana”, recorda.

Para além da timidez, Glória teve que superar também o desafio de ser uma estudante pobre em uma universidade de elite. Moradora da Zona Norte, ia de trem para o campus, acompanhada de colegas da Baixada Fluminense e daqueles ligados à Teologia da Libertação, alguns deles, seus vizinhos. Havia, sim, os colegas da Zona Sul, filhos de diplomatas, com condição financeira muito superior. “Esses foram os que ficaram. Pouquíssimos dos que vinham da Zona Norte continuaram o curso”, analisa.

Foi assim, em sua própria rotina, que Glória descobriu: a desigualdade social não se impunha apenas pelo aporte financeiro mas, igualmente, pelo capital cultural. “Cinema, para mim, era Indiana Jones; eles falavam em Truffaut.” Por isso, quando se tornou professora da rede estadual, fez questão de levar seus estudantes aos museus da cidade, um gesto de apropriação para que não passassem pelos mesmos constrangimentos que ela.

Existência de intelectual e mulher
Ao longo da História, a Filosofia se consolidou como área da Ciência dominada por homens, desde Platão até Zygmunt Bauman. Espelho da nossa sociedade patriarcal, a Academia reflete o silenciamento das mulheres, aliada a uma visão de mundo pautada pela perspectiva masculina. Glória não poupa palavras para descrever como é lidar com essa realidade: “É uma merda!”

Intelectual e mulher num meio masculino, desde cedo teve que lidar com atitudes ofensivas. Quando uma amiga de adolescência engravidou, Glória costurava peças para o enxoval nos intervalos entre as aulas, o que causou estranheza entre seus pares: como era possível uma intelectual gastar seu tempo fazendo crochê? A resposta era dada de forma direta, sem sofismas: “Uma intelectual costura, faz crochê, toma banho e faz cocô!”

Certa vez, questionada sobre seu trabalho como pesquisadora, Glória foi acusada de ser uma professorinha que fazia coisinhas. Que coisinhas?, ela se perguntou. “Dar aula direito. Ser professor não é ofensa! É ofensa se preocupar com o aluno? É ofensa ser humano e existir humanamente na Academia? É ofensa ser mulher e não negar isso estando na Academia? Acho que é uma inversão que não passa somente pelo feminino e masculino, mas também pelo intelectual, pelo que significa ser intelectual. O povo tá ficando maluco. Acho que o problema é, para falar a verdade, a estupidez.”

Para Glória, esses são exemplos de quem se convenceu de que a Academia é deslocada da existência, e adota a postura de hostilizar a mulher intelectual, a qual, todavia, vive a erudição colada à sua existência. Nunca deixou de fazer nada por ser mulher, mas “sempre tive muita dificuldade de fazer o que fiz, incluindo estar na Universidade.”

Sua visão do movimento feminista é pautada pela reivindicação de direitos, como um sistema de creches noturnas e licença-menstruação. Como mulher, exige que sua fala seja respeitada e jamais menosprezada. Glória defende, em síntese, o reconhecimento de “todas as dimensões do feminino em termos de leis civis.”

A ansiedade invadiu a sala de aula
Em seus 28 anos de docência, Glória pode testemunhar o desenvolvimento da UFSJ, que cresceu em tamanho, em número de estudantes e na produção acadêmica. Professora preocupada com seus estudantes, ela reflete a respeito da incidência ascendente de transtornos mentais no ambiente acadêmico: “Garotos com doenças de velho, meninas tomando rivotril, o que é isso?! O que está acontecendo?”

Novos tempos, marcados pela rapidez, pelo excesso de informação, pela fragilização das relações: “Ninguém consegue parar! Quando é preciso falar, quando têm uma exigência maior, eles travam!” A cobrança exacerbada dentro da Universidade, tanto dos professores para com os estudantes, quanto dos estudantes entre si, associada à internet e, especificamente, ao fato de a ferramenta oferecer soluções fáceis e fórmulas prontas, despotencializa a criatividade e a sagacidade para solucionar os problemas.

O que se vê, segundo Glória, é uma geração que não é mais dona de seus processos, sem possibilidade de amor próprio. Uma saída possível seria o exercício da sinceridade consigo mesmo, aliada à busca pelo equilíbrio para lidar melhor com as responsabilidades acadêmicas, da vida social, dos desejos, das paixões, das relações pessoais. “Até chegar o momento em que você encontra seu ritmo, que permitirá saber até onde poderá ir.”