Dia Mundial da Poesia: cinco livros essenciais

Publicada em 21/03/2020

“A poesia me salvará.” Adélia Prado escreveu este verso em 1976. Está no poema “Guia”, que faz parte de Bagagem, seu primeiro livro como poeta. Neste Dia Mundial da Poesia, é Adélia quem abre nossa lista de cinco livros essenciais para se ler enquanto estamos de "quarentena". Listaremos um poema de cada título indicado, como prévia das maravilhas que a Poesia semeia como grande arte humana que é. Caberá a vocês, nossos leitores, procurar a íntegra ou outros poemas que compõem nossa seleção. Escolhemos reuniões de poemas escritos por mulheres ou livros por elas publicados recentemente, num viés sentimental que apenas começa a trilhar a Estrada de Tijolos Amarelos do Mágico Mundo da Poesia!

Poesia reunida, de Adélia Prado. Publicado pela Record em 2015, ano em que a poeta completou 80 anos, traz toda a obra poética de Adélia, de 1976 a 2014, incluindo poemas que haviam sido retirados de edições posteriores às suas primeiras publicações. Bagagem e O coração disparado estão acessíveis no LeLivros.

Sedução
A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.

Da poesia, de Hilda Hilst, foi publicada em 2017, pela Cia. das Letras – a tão aguardada reunião de seus 26 livros de poesia, como Hilda queria: “num volume que pare em pé, como gostam os americanos”. A poeta está no LeLivros e no site do Instituto Moreira Salles, ao lado de Adélia Prado e outros luminares de nossa Poesia. Zeca Baleiro musicou lindamente os 10 cantos de Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio, que está em Júbilo, memória, noviciado da paixão, de 1974.

II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.

Poesia reunida, de Bruna Lombardi. Sextante, 2017. Chico Buarque nos adverte no prefácio de No ritmo dessa festa, o primeiro dos cinco livros da Bruna poeta: “Convém separar o rosto de Bruna da poesia de Bruna. (...) a poesia de Bruna é mais que dada, é escrachada, anda descomposta, morde, fuma de tudo, é áudio, é toque, é cheiro, pertence a um outro canal. Convém separar Bruna de Bruna. Sem interferências.” Disponível em e-book no site da editora, com link para leitura de alguns poemas na Amazon.

Hino
Tenho lutado todos os dias pra ser uma mulher
no entanto onde nasci os homens têm sempre razão
e eu que não me interesso pela razão mas por outros sentimentos
teço silenciosamente à porta da minha casa
junto às outras mulheres da minha rua
a trama dos nossos instintos
e minha rua passa por outras cidades
atravessa países
não há fronteiras
tecemos todas nós o mesmo fio
matéria viva da nossa bandeira.

Poemas, de Wislawa Szymborska. A Cia. das Letras trouxe, em 2011, esta coletânea de 44 poemas da poeta polonesa, laureada com o Nobel de Literatura em 1996. Sua obra inteira consiste em cerca de 250 poemas cuja função é buscar o sentido das coisas, seja nas miudezas cotidianas, seja nos horrores da História, guiada pelo assombro de estarmos aqui, vivos, no planeta Terra, onde habitam os poetas – os que enfrentam, “em silêncio, com paciência, à espera de si mesmos, a folha de papel ainda em branco.”

Encontro inesperado
Nós nos tratamos com extrema cortesia,
dizemos: quanto tempo, que bom revê-lo.
Nossos tigres bebem leite.
Nossos falcões preferem o chão.
Nossos tubarões se afogam no mar.
Nossos lobos bocejam diante da jaula aberta.
Nossas cobras perderam seu lampejo,
nossos macacos, sua graça; nossos pavões, suas plumas.
Faz tempo que os morcegos deixaram nossos cabelos.
Caímos em silêncio no meio da conversa,
e não há sorriso que nos salve.
Nossos humanos
não sabem falar uns com os outros.

Fresta por onde olhar, de Ana Elisa Ribeiro. Editorial Interditado, 2008. Ela gosta de se definir “professora e poeta”. Contista, cronista, colunista, autora de livros infantis, também. Moradora da Renascença, bairro na região nordeste da capital mineira, Ana Elisa faz poesia clássica nesse poroso mundo contemporâneo, no qual alguns poemas “já nascem poídos”. Com brilhos, porém. Refulgindo em diversos sites poéticos na internet.

reza
eu me distraio ajoelhada
nos grãos duros
do que virou a minha vida
minhas lembranças
são ficção
e se comparo meus dias
aos meus desejos
sou desertora
se eu deixasse estar
passaria o tempo
queimando meus desejos
em velas acesas
em intenção de santa rita
meus desejos realizados
viraram vigas
e os que são ainda desejos
já viraram ruína