A Psicologia e a prática antirracista, solitária e solidária

Publicada em 27/08/2020 - Fonte: ASCOM

Filippe Mello Lopes [foto] chegou a São João del-Rei em 2006 para cursar Psicologia na UFSJ. De lá pra cá, terminou a graduação, fez o mestrado, trabalha na área. É dele o relato de hoje da série Psicólogos e psicólogas da UFSJ*.

“Tinha como perspectiva sair de Belo Horizonte para o interior mineiro. São João ocupou lugar de desejo quando conheci a cidade numa excursão escolar e me apaixonei por suas ruas, vielas, travessas e arquiteturas. Desde minha chegada, fui morar em uma República, composta por mais três colegas (que se tornaram grandes amigos).

Na universidade, logo fui eleito representante de turma e me aproximei das ações do Centro Acadêmico. Em 2007 já compunha chapa do Centro Acadêmico e em 2009 fui indicado para ocupar a 1ª secretaria do DCE. No mesmo ano, comecei as atividades da extensão, acompanhando as reuniões do Conselho Municipal de Saúde (CMS-SJDR). Experiência de grande relevância que me oportunizou muitas vivências, como a ida para Brasília na Marcha Nacional dos Usuários dos serviços de Saúde Mental e na IV Conferência Estadual e Nacional de Saúde Mental, como delegado em ambas.

No ano de 2010 comecei a iniciação científica, já dando destaque para o que fazia brilhar meus olhos na Psicologia: a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial. Tive o professor Walter Melo como orientador, que compreendeu meu interesse em pesquisar, em especial, a saúde pública/mental no Brasil.

Formei em 2012 - o currículo da graduação noturna estimava seis anos e meio de curso, e assim o fiz, dada a necessidade de trabalhar durante o dia. Durante os primeiros anos, os trabalhos eram mais escassos, como trocar chuveiros e alguns “bicos” em carros de conhecidos - antes da Psicologia, minha profissão era a mecânica automotiva. Passei a fazer carretos e tal prática me sustentou durante os anos que se seguiram até a entrada no Mestrado.

Ao mesmo tempo, fazia estágio acompanhando dois jovens em duas escolas diferentes. Meu contrato era com as famílias dos jovens e isso me permitiu construir laços afetivos que carregarei durante toda a vida. Os aprendizados ultrapassaram o “saber técnico”. Junto a isso, ganhei mais uma língua, ao conhecer, conviver e aprender com a comunidade surda, depois me formando também em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS).

Ingressei em 2013 no Mestrado em Psicologia, sob orientação do professor Marcelo Dalla Vecchia, e vislumbrei a pesquisa e a carreira acadêmica como desejos. Defendemos, em 2015, a dissertação “As novas comunidades terapêuticas e as velhas políticas sobre Drogas no Brasil: um estudo de caso sobre a Aliança pela Vida”. No mesmo ano, entrei para a Secretaria de Saúde de São João del-Rei, como coordenador de Saúde Mental do município, o que me colocou a par de uma junção importante em minha vida: o encontro entre o “saber” e a “prática” da Psicologia. Passados 12 meses, assumi vaga em concurso público no município de São Tiago, buscando uma segurança necessária ao momento do nascimento de meu primeiro filho. Assumi o cargo de psicólogo!

Como conselheiro do XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG), vivi três anos de ações como, por exemplo, inspeção das comunidades terapêuticas e dos hospitais psiquiátricos. Ao sair da gestão, fui convidado a compor a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CDH/CFP), local em que me encontro até o momento e que muito me alegra, por construir discursos e práticas em defesa das pessoas – todes elas, devido ao enorme fosso democrático, social e humanitário que vivemos no país, em especial, neste momento.

Já atuando com a psicologia clínica em São Tiago, abri meu consultório particular, tendo em vista a pluralidade da atuação do campo e que, mais uma vez, convoca à potência do fazer psicológico, ético e cuidadoso.

A Psicologia não só me permitiu conhecer esses mundos, como habitá-los e ter voz nos mesmos, ainda que de modo distinto de uma parte da Psicologia (branca e mais abastada economicamente). Sendo eu negro, filho de pais trabalhadores e sempre tendo em vista que precisava “ser o melhor”, me construí e me permiti também ser construído a partir dos discursos e construtos da Psicologia ensinada na UFSJ. Ainda que até hoje não tenha muito “cabimento” em vários espaços acadêmicos, pude conhecer outros, em especial os movimentos sociais da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial e que me ofereceram esse lugar de “pertença e referência”. Com os loucos, na rua, construindo uma liberdade possível.

Ainda que sustente meu desejo de ocupar uma cadeira de docente em Psicologia da UFSJ, sei que será ainda uma longa e árdua jornada. Todavia, tenho a certeza que a Psicologia (a que recebi e a que ofereço) é a prática que pode nos libertar dos sofrimentos que nos acompanham, como o racismo, o despertencimento, o não-lugar, a revolta gerada pelo racismo. Assim, se existe algo que posso e me autorizo a fazer, este algo é agradecer. Pelo que vivi e pelo que aprendi, para operar, com minhas próprias formas, um fazer da Psicologia pautada numa prática antirracista, solitária, e, sobretudo, solidária ao que o outro traz como sofrimento."

* Acompanhe no Facebook e Instagram da Universidade a série especial "Psicólogos e psicólogas da UFSJ", em homenagem ao Dia do(a) Psicólogo(a), 27 de agosto.