"As coisas da arte são sempre resultado de ter estado a perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até um ponto que ninguém consegue ultrapassar. Quanto mais se avança, tanto mais própria, tanto mais pessoal, tanto mais singular torna-se uma vivência, e a coisa da arte é enfim a expressão necessária, irreprimível o mais definitivamente possível dessa singularidade... aí está a enorme ajuda das coisas de arte para a vida daquele que tem de fazê-las, que elas sejam uma síntese; a conta do rosário, na qual sua vida diz uma prece, o testemunho para ele mesmo, sempre renovado de sua unidade e veracidade, o qual realmente só para ele se volta, atuando anonimamente para fora, sem um nome dado, apenas como necessidade, como realidade, como existência".
 
Rainer Maria Rilke


 
 
Livros virtuais, bibliotecas inteiras dentro de um CD-Rom. Livro sem livro, livro sem papel; biblioteca sem estantes, sem corredores, sem paredes. Ao sermos chamados a lembrar dessa realidade tão próxima, sentimo-nos ameaçados na condição de leitores. Não apenas daqueles que lêem sinais gráficos sobre uma superfície - seja de papel ou virtual-, sentimo-nos ameaçados enquanto leitores do livro corpo, ora de arte, ora artesanal. Leitores do acaso, que por vezes encontra num velho livro empoeirado comprado em algum Sebo, velhos sinais que se fazem signo dos antigos proprietários, ou ainda as cicatrizes nas suas páginas, ou por que não? o sebo das mãos que o folhearam - sebo e cicatrizes que dão corpo ao livro; leitora dos Ex-Libris que nos contam um pouco de outros leitores, como nós; leitores das encadernações marcadas a ferro e fogo no couro, por algum artesão afeito às artes do papel; leitores de antigas e inusitadas técnicas de impressão, como as de marmorização onde a tinta que boia na superfície da água se deixa imprimir na superfície do papel: leitores da arte da encadernação, com suas pinturas, costuras e dobras no papel; leitores que lêem, não apenas com os olhos teóricos, mas com os olhos também do corpo que vê a arte insuspeitada que habita as páginas e a capa do livro; leitores, igualmente tácteis, que se surpreendem com as diversas texturas e gramaturas do papel; leitores ouvintes, que por vezes se deixam embalar pelo ritmo do silêncio quebrado pelo barulho do folhear de páginas de papel; leitores gustativos, que se comprazem no gosto e no gozo do corpo livro que lhe cai nas mãos; leitores olfativos que Sentem e conhecem o cheiro do papel novo ou daquele que de tão velho abriga em si, ácaros e outros viventes da arte da escrito, pensamos no que a tecnologia irá fazer para substituir essas leituras que se pode fazer de um livro, pensamos nisso tudo e sentimo-nos ameaçados no nosso próprio corpo. Mas mesmo sentindo-nos incomodados e ameaçados, tentamos compreender a dimensão dessa nossa tecnologia virtual - ou melhor, somos quase que constrangidos a nos render diante da sua força -, por isso estamos nos lançado numa primeira empreitada de publicações virtuais. Não queremos, nem de longe, substituir o prazer e o mistério que se escondem nas páginas de um livro real, mas estamos nos valendo do que existe de positivo, nas linguagens virtuais – que é a possibilidade de romper barreiras e de franquear, para um número imprevisível de leitores, a produção acadêmica.

Glória Ribeiro
Tutora do Grupo PET do Curso de Filosofia da UFSJ